Axé celebra 30 anos em meio a crise da indústria e a disputa com outros sons - David Gouveia Notícias

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08/02/2015

Axé celebra 30 anos em meio a crise da indústria e a disputa com outros sons

Gênero explodiu na década de 1980, primeiro na Bahia e depois no resto do país


SALVADOR — O “Furdunço” está armado. O circuito Barra-Ondina, em Salvador, recebe neste domingo na avenida 22 trios elétricos, que representam desde a origem do axé aos contemporâneos. Dos tradicionais blocos afro Ilê Aiê e Muzenza à revelação Baiana System. De Armandinho a Alavontê, projeto formado no verão passado por veteranos como Ricardo Chaves. Os 30 anos do axé, celebrados no carnaval 2015, vêm sendo comemorados desde os ensaios de verão.

No palco em que Daniela Mercury faz seu tradicional “Pôr do som”, no primeiro entardecer do ano, foram celebradas as protagonistas. Uma viagem no tempo, que começou com Sarajane e Márcia Freire e terminou em Claudia Leitte. Mesmo quem rejeita o gênero se lembra de versos como “Vamos abrir a roda, enlarguecer”, “Eu quero te abraçar, te beijar, preciso desse amor”, “A cor dessa cidade sou eu”, “Ae, ae, ae, ae. Ei, ei, ei, ei. Oô, oô, oô, oô, oô, ô”. São incontáveis os hits que fizeram milhões de brasileiros levar as mãos para o alto e tirar o pé do chão. Mas, ao longo dessas três décadas, não foram só as mulheres que reinaram. É de um homem o refrão que determina o início de tudo.

DO BAR ÀS MULTIDÕES

Luiz Caldas tocava com a banda Acordes Verdes (da qual fazia parte um jovem Carlinhos Brown) quando foi a Simões Filho, região metropolitana de Salvador, rever amigos do Trio Tapajós. Num bar, encontrou Paulinho Camafeu, do bloco afro Filhos de Gandhy. Entre cervejas, pescou a brincadeira entre um rapaz e uma garota: “Pega ela aí pra passar batom”. Estava feito o refrão de “Fricote”, faixa do disco “Magia”. A pedra fundamental.

Luiz Caldas e a banda Acordes Verdes
Enquanto os holofotes se voltavam naqueles idos de 1985 ao frenesi do primeiro Rock in Rio e à leva de álbuns de uma cena que viria a ser protagonizada por Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Titãs e outros, um estilo musical nascia paralelamente em Salvador.

— “Fricote” finca a axé music da Bahia para o mundo, trazendo uma dança que invadiu as ruas de Salvador. Uma dança que não foi criada por mim. Ela estava ali, à minha frente, traduzindo a espontaneidade do povo — conta Caldas.

Só na Bahia, o álbum com o hit vendeu 100 mil cópias. Um burburinho formou-se. Chacrinha levou Caldas para o seu programa, depois Sarajane, Banda Mel, Reflexu’s, Cheiro de Amor... As gravadoras, é claro, detectaram algo novo a ser explorado.

Naquele mesmo 1985, saíram outros dois discos emblemáticos: “Rio de leite”, de Sarajane, e “Mensageiros da alegria”, de Gerônimo. Sarajane explodiria dois anos depois, com “A roda”, com repercussão nacional e clipe no “Fantástico”.

sarajane
O carnaval da Bahia, antes concentrado entre clubes e a Avenida Sete de Setembro, ganhava as ruas. A partir de 1992, ganhou o Brasil, quando Daniela Mercury fez, em São Paulo, um histórico show no vão livre do Masp. Num projeto para iniciantes, ela parou a Avenida Paulista. No mesmo ano, lotou a Praça da Apoteose, no Rio. Virou especial da Globo.

— Eu tive de interromper o show no Masp porque diziam que eu ia derrubar o museu — lembra ela. — No dia seguinte, os jornais estamparam “Uma baiana para São Paulo”. Depois teve a Apoteose... Esse show no Rio dá a dimensão do sucesso no Brasil.

No mesmo período, era lançado “O bicho”, de Ricardo Chaves, e “Nossa gente (Avisa lá)”, do bloco afro Olodum, grupo que define o samba-reggae e a marcante célula rítmica do gênero — e principal influência de Daniela Mercury.

— Olodum, com “Faraó”, foi um divisor de águas. Muita gente absorveu aquela sonoridade. Construí minha música em cima dela — reconhece Daniela.

Para Chaves, a cantora protagoniza um segundo momento marcante do axé:
— O “Canto da cidade” trouxe uma outra visão para o que estava acontecendo no carnaval de Salvador — diz ele, referindo-se ao crescimento mercadológico do gênero, que passou a atrair atenção nacional.

Em meio à turbulência do confisco das poupanças, do processo que gerou o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello e às vésperas da recuperação, com o Plano Real, a trilha sonora do país era a música festiva da Bahia.

As gravadoras festejavam milhões de cópias vendidas, os empresários se encontraram no carnaval baiano, todo domingo Gugu e Faustão disputavam as sensações do momento.

— Foi a melhor época musical que vi no Brasil. O axé era o exótico, as pessoas exibiam seus discos nas prateleiras. Fizemos muita gente feliz. E com o meu “tira o pé do chão”, muita gente se esqueceu dos problemas — diz Netinho, que coleciona sucessos como “Beijo na boca” e “Milla” e está ausente do carnaval desde o ano passado por problemas de saúde.
DE MÃOS DADAS COM O PAGODE

Ainda nos anos 1990, o axé abraçou o pagode baiano, com a ascensão meteórica de É o Tchan. Após anos fora da mídia, o grupo de Beto Jamaica e Compadre Washington voltou a lotar seus ensaios neste verão, embalados pelo fenômeno comercial de “Sabe de nada, inocente”.


Sucedido pelo Harmonia do Samba e seu “Vem neném”, o pagode tem hoje o seu maior representante na banda Psirico, de Márcio Victor, o homem do “Lepo lepo” e do “Xenhenhém”, candidata ao posto de música do carnaval 2015.

Pupilo de Brown e percussionista de Caetano Veloso por uma década, ele desmistifica a diferença dos gêneros.

— Pra mim, tudo o que é produzido na Bahia é axé — diz Márcio Victor.
Se os anos foram dourados para o axé na década de 1990, nos anos 2000 ele pouco se expressou.

Marcio victor
Também atingido pela crise da indústria, manteve-se forte com Ivete Sangalo, como mostra o levantamento anual da Crowley Broadcast Analysis das canções mais executadas nas rádios. Entre as dez mais de 1999 a 2014, Ivete apareceu duas vezes com axé: “Flor do reggae” e “A festa”. Em outras três, figurou com sons de apelo romântico, como “Se eu não te amasse tanto assim”.

Criador do termo “axé music”, em 1987, o jornalista baiano Hagamenon Brito coloca Ivete como protagonista da terceira fase. Ela seria iniciada com o sucesso da carreira solo pós-Banda Eva e viria até hoje, “com a cena enfraquecida em seu showbiz, mas ainda capaz de gerar uma estrela pop como Claudia Leitte, de amadurecer um talento como Saulo e ter em Brown uma usina de ideias criativas”.


— O futuro é preocupante, porque o axé, ao contrário do sertanejo, não está sendo capaz de gerar novos artistas com star quality — observa Brito.

Desde 2010 o axé perdeu de vez o império para o sertanejo universitário. Em 2011, das dez mais executadas nas rádios, nove eram do gênero. Ele, junto ao arrocha-sofrência de Pablo, também invade o carnaval baiano, com trios e como atrações dos camarotes. Márcio Victor deseja que a cena mude:
— Devolvam meu axé, tragam ele de volta pro sucesso. Gostamos do sertanejo, mas queremos o axé.

CRISE DE IDENTIDADE

Uma crise de identidade ronda os bastidores. Basta, no entanto, passar uns dias no verão de Salvador para detectar que o gênero ainda atrai muito investimento privado e turistas.

Um dos maiores hitmakers baianos (“Água mineral”, “A namorada”, “Maimbê dandá”) e fundador da Timbalada, Carlinhos Brown é um agitador, capaz de promover até três eventos por semana no Museu du Ritmo. Para os 30 anos do axé, fez a canção-tributo “Por causa de você”. Um dos trechos diz: “Ilê Ayê, quem era eu pro que hoje sou?”.

— Teve muita gente que passou a se achar autossuficiente, parou de ligar para quem era compositor, e a música perdeu muito em qualidade. Acho que essa mexida no axé se dá porque não aguentamos mais fazer música para vender abadá — observa Brown.

Para Sarajane, “as pessoas sentem falta do axé das antigas, com mais harmonia e mais bem trabalhado”.

— Trinta anos é uma data marcante: ou você se estabiliza ou vira lenda — dispara.
Netinho afirma que “o axé estacionou lá atrás e tudo o que se fez por aqui até agora foi uma tentativa de repetição dos mesmos formatos que a minha geração usou com sucesso e à exaustão”.

Encontro de trios, na praça Castro Alves, era ponto alto da festa
Apontado como representante da nova geração e autor da música-tema dos 30 anos, com a bela “Raiz do bem”, Saulo foi impactado pelo axé quando tinha 7 anos e viu Daniela Mercury em cima do trio. Hoje, aos 37, vê o aniversário com otimismo e esperança:

— O axé está de parabéns por ter mexido generosamente com a economia do país e ter revelado artistas maravilhosos que estão aí até hoje. Ele precisa voltar a deixar a música falar mais alto. Foi assim que o axé começou, e é assim que vai se reconfigurar.

A fórmula do sucesso, para Brown, está em sua essência:

— O axé é alegria e festa. A responsabilidade dele é convidar piano de cauda e levantar defunto. Se não cumprir essa função, já era.
 (Fonte Texto O GLOBO)

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