Gilberto Gil parece se multiplicar na quarentena. Faz lives, participa de debates virtuais, lançou há pouco um EP com show de 2012 gravado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, compôs uma canção inédita a quatro mãos com Ruy Guerra que acaba de gravar ao lado de Chico Buarque, fez novas versões de "Parabolicamará" e "Back in Bahia" e tem show online marcado ao lado da família.
A velocidade faz parecer que Gil responde à pandemia com o tempo de um raio, como canta na própria "Parabolicamará", que compôs há quase 30 anos. Mas ele diz discordar. "Não é intencional. São processos naturais de uma fase mais madura, uma extensão da herança da atuação política e de quase 60 anos de militância na música. Talvez seja mais uma resposta ao afã da indústria cultural, a mesma que faz a gente conversar agora", comenta ele por telefone, do Rio de Janeiro.
Gil fala como se fosse sempre dois -autor e observador, artista e figura política. Lados impossíveis de serem separados, como duas faces de uma mesma moeda. No campo político, o compositor de 78 anos, que foi vereador de Salvador no fim dos anos 1980, chegou a ser cotado para a chefia do Ministério do Meio Ambiente na gestão de Fernando Henrique Cardoso e foi o primeiro ministro da Cultura de Lula, observa o governo de Jair Bolsonaro com ressalvas, mas sem surpresas.
"É um esvaziamento proposital que vem desde Temer. A gente conhecia bem as consequências. Estão aí todas as questões da Funarte, a crise da Cinemateca, as decisões da Fundação Palmares", diz.
Para ele, a mesma lógica que dita as regras na política cultural também determina os caminhos no Ministério do Meio Ambiente hoje, das queimadas na Amazônia às passagens de boiada na legislação. "É o mesmo déficit, as mesmas respostas acanhadas e omissas. As posições sempre foram muito assumidas. Algo só mudará quando mudar o governo."
Mas Gil não se limita a ser observador -é também autor. Há cerca de duas semanas, reuniu-se virtualmente com Mário Frias, ator que chefia atualmente a Secretaria Especial de Cultura, para debater um projeto de lei que pode suspender o pagamento de direitos autorais no Brasil."Foi proveitoso, ele se mostrou aberto a olhar as demandas dos artistas, mesmo que seja mais uma questão do Legislativo do que propriamente da secretaria", afirma.
Essa dualidade também respinga na música. Do lado do autor, Gil acaba de compor uma canção inédita com Ruy Guerra, escritor e cineasta que é parceiro de longa data de Chico Buarque. "Fiz com o Ruy à distância, o que foi muito interessante, porque tive que me associar à poética e às várias lentes de um cineasta."
A faixa "Sob Pressão" foi gravada na última
semana por Gil e Chico, está em fase de mixagem e foi uma encomenda da
Globo para a nova temporada da série homônima, dirigida por Andrucha
Waddington. É também uma parceria inédita entre dois velhos conhecidos,
que chegaram a ensaiar músicas nos anos 1960.
"Eu tinha acabado de chegar em São Paulo, e o Ruy passou uns dias na minha casa. Ensaiamos letras dele para o Teatro de Arena, que tinha naquela época o [Augusto] Boal, o [Alexandre] Guarnieri, o Edu Lobo. Trabalhamos em duas ou três composições do Ruy, mas acabou não saindo."
Mas Gil também se define como um observador da música. Não apenas de outros grupos, campo no qual elogia ritmos considerados menos intelectualizados como o funk, o sertanejo ou o axé. "Sempre fui permeável a tudo. Estou do lado da abertura, do anticonservador, do antirracista. A Tropicália foi isso", defende.
Ele comenta que é hoje, acima de tudo, um observador de sua própria música. "Sou um visitante no meu território criativo." É o que ocorre em shows e lives recentes, nas quais revisita seus álbuns ao lado da família. Movimento que ganha um novo capítulo na apresentação online que fará no Coala Festival, no sábado (12), com o trio Gilsons, formado pelo filho José e pelos netos Francisco e João Gil.
"São os meninos que levam adiante a obra e a família Gil", fala -ao mesmo tempo artista e obra, autor e observador.
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